Do ódio à eliminação: morte de sem-teto mostra que a barbárie nos atropelou
A cidade parecia uma maquete no ponto mais alto. Na pequena varanda que acabava num barranco, era possível enxergar a chaminé da fábrica, a caixa d'água, a avenida principal, o antigo clube, o supermercado. Tudo em miniatura.
Do outro lado era, literalmente, tudo mato. Um mato modelado pelo relevo colinoso, típico do Planalto Atlântico paulista.
A distância preservava quem estava em casa dos ruídos da cidade, mas não a vista. A poucos metros dali, o silêncio era quebrado por um vizinho que, no meio da tarde, resolveu tocar piano.
A paz daquela vila era exatamente o que buscava quando quis voltar ao interior, após 12 anos dividindo apartamento com amigos em São Paulo, entre buzinas, engarrafamento, estresse e neuroses produtivas.
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Não sei exatamente do que fugia, mas um registro dos meus últimos dias na capital, marcados pela intensificação de protestos de todo tipo, foi a fala de um promotor diante de uma mobilização popular: "Estou há duas horas tentando voltar para casa mas tem um bando de bugios revoltados parando a avenida Faria Lima e a Marginal Pinheiros. Por favor, alguém poderia avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Júri e que se eles matarem esses f… eu arquivarei o inquérito policial".
O ar puro do interior, pensei, me levaria para longe da barbárie que começava a rosnar na cidade grande. Mudar era uma forma de não enlouquecer.
Só não nos mudamos para aquela vila, na Estrada dos Jequitibás, em Valinhos (SP), devido ao preço do metro quadrado de uma área cada vez mais valorizada. Optamos por um local mais acessível. E igualmente alto, de onde pudéssemos contemplar um pouco a paisagem pontilhada por morros e árvores.
Aquela estrada era uma espécie de Pasárgada para onde levava os pensamentos (e minha bicicleta) toda vez que precisava respirar.
Não é mais. Na quinta-feira, 18/07, famílias do acampamento do MST Marielle Vive, localizado perto dali, faziam um protesto naquela estrada para denunciar a falta de fornecimento de água no local. Fecharam um pedaço da pista, distribuíam panfletos e alimentos produzidos por eles mesmos.
Antes que eles concluíssem o protesto, um homem com uma camionete em alta velocidade jogou o veículo contra a aglomeração. Um senhor de 72 anos morreu na hora, e um cinegrafista ficou ferido.
Luís Ferreira da Costa foi socorrido de ambulância até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Valinhos, perto do ponto onde eu pegava ônibus todos os dias até pouco tempo. Não resistiu.
O motorista, de 60 anos, foi detido no fim do dia. Na delegacia, ele disse que acelerou por medo, após o veículo ser cercado, e que não percebeu que tinha matado alguém.
A frase resume o espírito de nosso tempo, no qual o medo, pai da raiva e avô da covardia, serve de justificativa para tudo, inclusive a barbárie – essa natureza distante que há quase um ano e meio vitimou, a 490 quilômetros do local onde escolhi viver, uma vereadora que dá nome ao acampamento.
O motorista não percebeu que havia matado alguém porque Luís Ferreira da Costa não era "alguém" – a bandeira e o boné do movimento que acusavam a destituição de qualquer posse o tornava facilmente eliminável no país das capitanias hereditárias, da grilagem, do suborno para erguer megaempreendimentos em área de proteção.
Olho para a foto da vítima, pai de dez filhos e avô de 16 netos que estava prestes a concluir um curso de alfabetização. E me pergunto que mal ele faria a alguém. Seu crime? Querer um pouco de água e um chão para plantar.
"Tem que passar em cima. A estrada é livre para todo mundo andar", disse o irmão do motorista, para quem quisesse ouvir (e registrar), ao chegar à delegacia.
Em outras palavras: o direito da camionete prevaleceu.
Espírito do tempo
Para quem não compreendeu o espírito do tempo, nada pode ser mais didático do que a defesa do direito a acelerar, atropele quem atropelar. A vida, nessas ocasiões, é um produto de valor escasso.
Durante o dia, lembrei da forma como ouvi, inúmeras vezes, amigos e vizinhos, muitos deles queridos, se referirem ao acampamento onde vivia o seu Luís como uma espécie de tumor e fonte de todos os males contra a ordem da nossa pequena cidade, mais uma entre tantas mediada por muros, condomínios fechados, cercas eletrificadas – pelo medo, enfim.
Minha Pasárgada estava mais para Dogville, o filme de Lars Von Trier que mostra como os mais pacíficos e pacatos ambientes podem abrigar também vilanias inconfessáveis. A impressão é reforçada ao pensar que, meses atrás, o morador de um condomínio vizinho ao meu entrou armado na Catedral de Campinas e cometeu uma chacina.
Nesse imenso Dogville que se tornou o Brasil, facilitar o acesso a armas parece ser a única grande solução imaginada pelas lideranças que se fortalecem na divisão e no discurso contra movimentos e seus integrantes extermináveis.
Busco, em um vídeo antigo, as palavras da psicanalista e pesquisadora da UFRJ Teresa Pinheiro, em uma palestra que acompanhei, logo que cheguei por aqui, em busca de um laço de pertencimento e coletividade que pareciam destroçados na minha velha rotina na cidade grande:
"Só podemos pensar em pertencimento se pensarmos na ideia de bem comum. Só vamos nos colocar no lugar do outro quando imaginarmos o outro no nosso lugar. Quando rompo com a ideia de alteridade, entro na barbárie. Eu posso matar uma barata porque ela não tem subjetividade. O gato de casa tem subjetividade. Ele sente, sofre, se alegra, fica triste. Eu empresto toda a minha subjetividade a ele. Quando eu não empresto, eu posso matar. E posso fazer coisas horrorosas. O regime escravocrata foi montado nisso, na ideia de que o negro não tinha alma. Na Segunda Guerra Mundial foi a mesma coisa: os inimigos não são meus iguais, são diferentes".
O mundo explode longe, mas as migalhas caem todas em nosso quintal. Em vez de paz, eles estão cobertos de sangue.
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