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Matheus Pichonelli

“Te perdoo por te ofender”: o novo lema da diplomacia brasileira

Matheus Pichonelli

29/08/2019 04h00

Reprodução

"Mil perdões" é um monumento da música brasileira ao cinismo. No clássico de Chico Buarque, o eu-lírico apronta, apronta e apronta nas andanças fora de casa e se sobressai com o espírito da nobreza dos grandes cafajestes quando diz relevar o ciúme e os supostos exageros da pessoa amada –e ofendida– que conta as horas "nas minhas demoras por aí".

Os adeptos do "gaslighting", uma forma de abuso psicológico que te convence de erros que você não cometeu, sabem como é dizer, no auge da briga, que perdoa o drama de quem chora quando quem ofendeu também chora, mas de tanto de rir. E finaliza: "te perdoo por te trair".

Em tempos de posicionamento público online, chorar de rir é escrever "não humilha cara kkkkk" quando um fã atribui a suposta birra do presidente francês sobre o colega brasileiro ao fato de sua companheira ser mais jovem, supostamente mais bonita, do que a dele.

Tiozões escrevem assim no Facebook e trocam esse tipo de carícia em público, expondo os troféus como quem disfarça uma insegurança que só eles sabem onde mora.

Quando parte de um chefe de Estado, o suposto alívio cômico tem como consequência uma crise diplomática, dessas que já leva grandes empresas estrangeiras a boicotarem produtos nacionais.

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Tudo começou quando, aproveitando a oportunidade de chutar a canela do congênere brasileiro pela descompostura de cancelar um encontro com seu chanceler para cortar o cabelo, Emmanuel Macron resolveu colocar em risco o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia ao dizer que a paralisia de Bolsonaro diante das queimadas na Amazônia contradizia os compromissos que ele mesmo assumiu com o meio ambiente.

Bolsonaro respondeu chutando a canela do oponente. Seu filho, futuro embaixador nos EUA, chegou a compartilhar um post em que o líder francês era chamado de idiota. O ministro da Educação fez algo parecido nas redes. Mas o camembert azedou de vez quando Bolsonaro disse a um seguidor no Twitter que era humilhação comparar os atributos físicos das primeiras-damas dos dois países. Brigitte Macron tem 66 anos; Michele Bolsonaro, 37.

A misoginia contida na curta declaração (pública, diga-se) já foi analisada por gente muito mais gabaritada que este escriba, como a Nina Lemos, e causou tanta celeuma que levou o presidente brasileiro a recuar -não sem antes fazer um escarcéu sobre os jornalistas que noticiaram a notícia (perdão pelo pleonasmo) e tentar mostrar que não disse nada do que disse.

A celeuma foi assim resumida pela Folha: "Após ofender mulher de Macron, Bolsonaro diz que não a ofendeu".

Macron respondeu dizendo esperar que os brasileiros tenham, um dia, um presidente à altura do cargo, dando mostras de que os produtores do próximo Big Brother Brasil terão dificuldades para manter a atenção do público nas picuinhas alimentadas dentro da casa hipervigiada. Nada parece concorrer com o bate-boca em público dos chefes de Estado, como se jamais tivessem abandonado a quinta série e os tempos em que as brigas eram estimuladas aos gritos de "oloko, agora apelou" na saída da aula.

Conheço, no meu círculo privado, quem passa a vida cometendo todo tipo de deslize, inclusive negando, com acusação de melindre, o direito do ofendido de se sentir… ofendido. Quando emparedado e levado a refletir sobre o que diz e faz, esse sujeito clássico costuma se melindrar ao estilo Chaves -"Tudo eu, tudo eu, tudo eu"-, como se fosse vítima de perseguição, e não um adulto incapaz de medir causa e consequência. Mas o vitimismo, claro, é sempre das minorias.

No caso de Bolsonaro, essa não é a primeira vez que esse expediente é usado para desdizer o que disse (outro exemplo mais recente foi o juramento de que ele não ofendeu a memória do pai do presidente da OAB depois de mentir sobre como ele desapareceu e morreu na ditadura).

Como o nonsense agora é a regra, a treta com os franceses não poderia acabar (nem estar perto disso) sem um trago de realismo fantástico. Diante da promessa de que Macron, em nome do G7, o grupo dos países mais ricos do mundo, faria algo a mais pela Amazônia do que queimar pontes com o governo local, depositando US$ 20 milhões em nome dos brasileiros, Bolsonaro manteve o brio dos que rasgam dinheiro no hospício dizendo que até aceitava a ajuda, desde que o presidente francês retirasse os "insultos" contra ele.

Depois recuou (de novo), mas era tarde. O governo brasileiro acabava de instituir, naquele momento, um novo lema na diplomacia nacional: "Te perdoo por te ofender".

Nem Chico Buarque seria capaz de romantizar tamanho requinte.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.