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Matheus Pichonelli

Vídeo da reunião prova que no comando do país segue um tiozão do churrasco

Matheus Pichonelli

14/05/2020 04h00

O presidente Jair Bolsonaro fala à imprensa da rampa do Palácio do Planalto. Foto; Agência Brasil

Jair Bolsonaro queria fazer um churrasco no fim de semana em que o Brasil enterrou a sua décima milésima vítima do coronavírus, o resfriadinho que ele apostou que uma hora dessas não faria mais estragos do que uma gripe comum. 

Alguém avisou que pegaria mal e ele teve de lidar com a frustração andando por aí de jet ski. Por sorte, apoiadores de um barco vizinho no lago de Brasília ofereceram um naco de carne mal-passada para desanuviar. Na ponta do garfo generoso estava a recomendação de Regina Duarte para tempos tenebrosos: fica leve, capitão.

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Em seu embate contra a histeria e o politicamente correto, o presidente já não pode assar a própria picanha sem ser tachado de insensível.

No descanso dos justos, sua única alegria foi ver o filho Eduardo, deputado e ex-futuro embaixador, dizimar a dúvida sobre o sexo do herdeiro em um chá revelação com um balaço de espingarda. Herdeira, no caso. Nas festividades das melhores famílias, menina veste rosa e meninos brincam de arminha.

Do congelamento do salário de servidores, inclusive dos médicos que neste momento estão na zona de combate da pandemia, às agressões a jornalistas no quintal do Planalto, existem muitas razões para se indignar com a postura do presidente diante da crise.

O churrasco, definitivamente, não é uma delas. Antes ele estivesse ocupado com a panceta e deixado o gerenciamento da crise para os adultos da sala. A repressão causou o efeito oposto.

Não tem rapaz latino-americano sem dinheiro no banco nem parentes importantes que não tenha aprendido, por experiência própria, que o churrasco de domingo é a Batalha de Termópilas, aquela que inspirou "Os 300 de Esparta", do homem comum.

No cantinho do guerreiro, qualquer um é Rei Leônidas. 

Um kit churrasqueiro é a catarse de quem desossa a peça e constrói a própria epopeia. Em roda, os amigos param para ouvir as histórias do novilho até o prato. Os segredos do tempero. A temperatura exata da cerveja. A playlist de quem tem as mãos ocupadas em esganar o frango e estraçalhar a linguiça enquanto o coração fecha os olhos e sinceramente chora ao som de "Evidências". 

Sóbrios ou abstêmios, os homens comuns em torno da churrasqueira purgam a miopia existencial com gritos de guerra e análises definitivas sobre a conjuntura. "São 11 filhos da puta", sentenciam uns, sobre times de futebol ou juízes, do campo e de tribunais.

 "Se tentarem foder meus filhos eu vou mudar", diz o pai-tiozão, com um espeto misto para o alto, a alvejar simbolicamente os inspetores, professores e direção escolar que não reconhecem o talento do filho de olhar bovino e índole duvidosa. Só porque transformou o parquinho em campo minado de bombinha cordão.

Num churrasco de domingo, o homem comum fala de assuntos diversos como se encarnasse Rui Barbosa. Nem todas as enciclopédias comportam tanta opinião formada e enrijecida sobre tudo.

O brasileiro, diz entre gargalhadas, tem que ser estudado. Você vê o cara pulando em esgoto, sai, mergulha e não acontece nada. kkkk.

Sobre coronavírus, ele acredita que muita gente já foi infectada no Brasil e já tem anticorpos que ajudam a não proliferar isso daí. 

Quando alterado, ele enche o peito para dizer que bom era no seu tempo, e que o erro da ditadura foi torturar e não matar. Que pau-de-arara funciona e o povo é favorável à tortura. 

Ele também acha que o patrão está certo por pagar menos para a mulher porque ela engravida, que defecar a cada dois dias ajuda o meio ambiente e que se o filho começar assim, "meio gayzinho", é só levar um couro e ele muda de comportamento. Se fosse filho dele? Bom, prefere que morra num acidente do que aparecer com um bigodudo por aí.

O Brasil, para ele, é uma virgem que todo tarado de fora quer.

Só não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay. Temos famílias. Agora, quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade.

Se alguém corrige, afirma: nada contra. Nem existe homofobia no Brasil. Quem morre o faz em local de consumo de drogas, de prostituição ou por execução do próprio parceiro.

Em tempos de vestibular, ele reafirma: quem usa cota está assinando embaixo que é incompetente.

Racismo? Não. Coitadismo, talvez. Ele tem até amigos negros. Inclusive já visitou um quilombo no interior paulista e lá percebeu que o afrodescendente mais leve pesava sete arrobas. Não servia nem para procriar. kkk.

Antes do fim da tarde, o tiozão vê as crianças brincando de bola e até bufa. Quando um moleque de nove ou dez anos vai trabalhar, articula ele, vem um monte de gente dizer "trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil…". Agora, quando tá fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada. Então, o trabalho não atrapalha a vida de ninguém.

Enquanto mastiga, filosofa: falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira.

A sabedoria tiozística se espalha entre perdigotos, vinagretes, trocadilhos com pavê e comentários sobre a primeira-dama da França. Ninguém ouvia.

Em outros tempos, a empolgação do guerreiro de churrasqueira durava até a música de encerramento do Faustão, quando acorda assustado, com uma baba no canto da boca, jogado no sofá de casa.

Vinha a segunda-feira e os tigres voltavam a miar. A dor de cabeça não era revolta, e podia ser combatida com sonrisal.

Em algum momento, os tiozões do churrasco fizeram dos cantinhos do guerreiro embaixadas e se conectaram, por WhatsApp, a outras representações. Descobriram que não eram ilhas de frustração amaciada com limão e alho, mas uma força política de linguagem e estética comuns e pronta para transformar um dos seus em rei Leônidas.

Como aquele parente boquirroto, Jair Bolsonaro estaria uma hora dessas apenas temperando a panceta e proferindo vitupérios para si mesmo não fosse o grupo de WhatsApp.

Como presidente, transforma reunião ministerial em seu cantinho do guerreiro particular.

Foi lá que, em vez de emparedar a direção da escola, prometeu, segundo relatos, mudar só o comando da Polícia Federal (ou a equipe de seguranças?) para blindar os filhos arteiros suspeitos de envolvimento com rachadinhas e gabinetes do ódio.

Por ironia, a fala aberta, como se estivesse diante de um espeto misto, não da caneta presidencial, pode ser o último ato de quem poderia estar leve, e em paz, se tivesse ficado no sonrisal.

Só não entendo a razão para tanto choque. Alguém achava mesmo que quando a coisa ficasse séria, e o tiozão do pavê precisasse lidar num belo dia com, sei lá, uma crise econômica ou uma pandemia, o sujeito que confundia mergulho no esgoto com imunidade sanitária iria mesmo se converter em estadista? Nossos mitos já disfarçaram melhor.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.