De Flordelis aos 'guardiões', Brasil cozinha sua teocracia em fogo brando
O Irã é uma teocracia fundada e administrada sobre controles sociais rígidos.
A Revolução Islâmica, instalada pelo aiatolá Khomeini há mais de 40 anos, tornou obrigatório o uso de véu para mulheres, segregou os espaços públicos por sexo, censurou a mídia para conter as influências ocidentais e proibiu o consumo de bebidas alcoólicas. Tudo foi zelosamente implementado, às vezes de forma bruta, pela polícia da moralidade e as forças paralimitares do país, como escreveu recentemente o repórter do New York Times radicado em Teerã Thomas Erdbrink.
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No relato, Erdbrink contou que, ao longo dos anos, esse controle severo da vida social foi criando brechas e se flexibilizou até se aproximar do que nós, latino-americanos inspirados no american way of life, chamamos de normalidade.
É lá, neste espaço onde autoridades políticas e religiosas ainda se confundem, que se passa o filme "O Apartamento", que está no catálogo da plataforma de streaming Belas Artes à La Carte e que vi pela primeira vez na semana passada.
Dirigido por Asghar Farhadi, o longa lançado em 2016 acompanha a mudança de um casal de atores para um novo apartamento após o prédio onde eles moram ser interditado sob risco de desmoronamento. Para bons cineastas, e Farhadi é um deles, meia metáfora sobre casamentos e sociedades em crise basta.
O novo lar pertence ao diretor da companhia teatral em que eles trabalham. A mudança acontece enquanto eles encenam a peça "A Morte do Caixeiro Viajante", de Arthur Miller.
É entre um ambiente e outro que o Estado teocrático se embrenha até a medula de seus personagens.
O filme, em tese, não é sobre este Estado, mas este Estado está presente na sala de aula só para meninos, na menção à censura de uma cena da peça e na roupa vermelha de uma atriz que deveria representar uma prostituta nua.
Está também no banheiro do apartamento dos atores que, de tanto silenciar, perderam a capacidade de falar de si.
Naquele apartamento, os novos moradores tateiam no escuro tentando descobrir quem é a antiga misteriosa moradora que saiu do local às pressas e deixou para trás um quarto trancado e lotado de quinquilharias, com brinquedos e desenhos infantis.
Por mais que seja pressionado, o dramaturgo/proprietário se nega a dar qualquer informação sobre a ex-inquilina, de quem os vizinhos recriminam uma rotina dita pecaminosa.
Um dia, a atriz volta mais cedo para casa e autoriza a entrada de um homem estranho pensando que era o marido. Este, quando chega de fato, observa um rastro de sangue do banheiro até as escadas. É levado até o hospital, onde os médicos tentam conter um ferimento na cabeça da esposa.
O episódio traumático é envolto em silêncio. O pouco da raiva que conseguem elaborar é expresso em falas e atuações não ensaiadas na peça.
Diante da censura, os personagens criam seus próprios monstros para chegar aos culpados por suposição. Ela pede para não envolver a polícia na história. Eles tentam seguir em frente, mas os fantasmas surgem em todos os cômodos da casa.
Da tragédia que se desenha, está mais claro para os espectadores do que para os personagens que tudo poderia ter sido resolvido de outra forma se a cena não fosse acobertada pela vergonha em um país onde toda a nudez será castigada.
Tudo entra em uma zona nebulosa porque ninguém sabe quem vivia naquele quarto trancado.
Diferentemente do Irã, uma república teocrática que se abre aos poucos, o Brasil é uma república democrática que tem se fechado a cada dia.
Um aiatolá que se escandalizasse com nosso Carnaval antes e depois de 79, quando respondíamos à censura com porchanchada, talvez se chocasse ainda mais sabendo como, em banho maria, a vergonha e a censura passaram a integrar também o léxico das relações sociais no Brasil contemporâneo.
Neste país em transição, o presidente fala sem cerimônias em escolher um ministro "terrivelmente evangélico" para o Supremo Tribunal Federal, uma ministra de Direitos Humanos quer legislar sobre direitos reprodutivos, um prefeito manda recolher HQs com cenas de beijo gay em uma Bienal, milícias e guardiões da religião promovem ameaças e censuras em hospitais, as armas, e não os livros, viraram objetos de desejo pessoal, a Justiça flerta com censura prévia, comediantes são atacados por canais oficiais, a palavra "gênero" virou maldição nas escolas, o uso de termos não religiosos em livros didáticos é interpretado como "ataque à fé" e uma criança é obrigada a entrar pelo porta-malas de um automóvel no hospital para fugir de fundamentalistas com a Bíblia na mão e cumprir sua vontade de não levar em frente a gravidez resultante do estupro sistemático que se perpetua no silêncio.
Vítimas como ela agora são coagidas a contar à polícia o que aconteceu se quiserem ter acesso ao sistema público de saúde, o que na prática perpetua ainda mais o silêncio.
Mais do que dramas privados, há escândalos desta tragédia pública que escancaram o espírito de uma época. É o caso do assassinato do pastor Anderson do Carmo que, por trás das pregações e engajamento missionário na criação de 50 filhos adotivos, mantinha uma rotina incestuosa e abusiva que levou a mulher, a deputada federal Flordelis dos Santos de Souza a encomendar, segundo a polícia, o seu destino. Tudo para não escandalizar o nome de Deus diante de uma possível separação.
Sem que ninguém anunciasse, essa república fundamentalista em que o Brasil está fincando as suas bases já pauta silêncios, decisões e tragédias nas estruturas trincadas das melhores famílias.
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