A insegurança de nossos governantes é uma aula de masculinidade frágil
Matheus Pichonelli
22/01/2019 04h00
Governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (de óculos), faz flexões durante troca de comando do Bope – Carlos Magno/Secom
"É isso o melhor que um homem pode ter?"
A pergunta, feita em uma propaganda de lâmina de barbear, questiona um antigo slogan da própria marca. Sai de cena "o melhor que um homem pode ter" e entra em campo uma nova ideia: "o melhor que um homem pode ser".
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O vídeo mostra como, durante anos, naturalizamos comportamentos lamentáveis atribuindo-os a uma questão de gênero.
"Garotos são garotos", minimizamos, toda vez que testemunhamos cenas de agressividade, assédio, conduta predatória.
Se, para vender um produto, uma empresa precisa estar conectada a um conjunto de valores de sua época, a propaganda acerta no tom e avisa: podemos ser melhor que isso.
Como?
A resposta é uma piscadela para as futuras gerações. No vídeo, filhas são ensinadas a serem fortes (e não, surpresa, a serem princesas, frágeis e à espera de um príncipe salvador). Meninos são desencorajados a brigar. E amigo que é amigo avisa quando alguém toma uma atitude desagradável diante de uma mulher.
O vídeo deu tão certo que não demorou a ser classificado como "polêmico".
Polêmico por quê? Para quem?
Para entender, é preciso lembrar: estamos em uma época em que, para provar a própria virilidade, a moda, entre governantes, é posar, ao lado de outros homens, mostrando resiliência entre flexões, caso do mandatário do Rio, Wilson Witzel, ou exibindo armas, ou demonstrando o medo de movimentos igualitários ("feias, bobas", etc).
Essa masculinidade frágil – ou "iludida com a própria virilidade", como disse certa vez o ator Pedro Cardoso sobre Jair Bolsonaro – parece fazer coro ao anúncio da ministra dos Direitos Humanos, Família e Mulheres, Damares Alves, segundo quem uma nova era começou.
Nessa nova era, menino veste azul e menina veste rosa. Para bom entendedor, meia distinção cromática basta, principalmente quando o presidente eleito anuncia na campanha o medo de ver por aí meninos brincando de boneca e atribui a um inexistente kit gay todas as mazelas do nosso sistema educacional.
De fato, é realmente muito assustador imaginar que meninos possam desenvolver, enquanto brincam distraidamente, algum tipo de responsabilidade no cuidado com os filhos. Já pensou, depois de adulto, ter de dividir essas funções em casa? Pegar criança no colo, trocar a fralda, preparar a mamadeira, o almoço, reconhecer que a organização doméstica é também tarefa dele?
Impensável, não?
Tão impensável que é preciso ter em mente que a gente um dia sai da quinta série, mas a quinta série não sai da gente.
A prova disso é saber que há quatro anos o Senado aboliu o número 24 de seus gabinetes. No jogo do bicho, 24 é o número do "veado", e também o terror de qualquer estudante da quinta série – um amigo da turma leva o apelido de "Twenty Four" até hoje por causa da constrangedora presença na lista de chamada.
Na quinta série, temos todas as dúvidas e inseguranças do mundo sobre o que somos, para onde vamos, o que queremos. Para que ninguém perceba, é preciso apontar o dedo para todo mundo que pareça quebrar um falso modelo de normalidade para conseguir a aceitação do grupo.
O ideal é que, depois de velhos, todos repensem essa postura e entendam por que, ao conseguir o tão sonhado ingresso à turma do fundão, afastamos tanta gente, a custo de todas as ofensas, e afogamos em nós o que temos de melhor.
Em troca do selo de "macho raiz", passamos a viver limitados em círculos de amizades, referências e ídolos masculinos, a quem devotamos nossos amores reais enquanto limamos do dicionário e da paleta de cores qualquer associação ao feminino.
Assim, por acreditar que a sensibilidade é feminina, matamos a sensibilidade. E – spoiler – passamos a vida sem jamais entender por que, entre tantas patadas, temos tanta dificuldade de nos relacionar, nos abrir e desenvolver algum tipo de empatia a quem não consideramos um(a) igual.
Pensando bem, essa nova era não é tão nova era assim. Só ficou mais estridente – e afrontada pelas exigências de um modelo igualitário de poder. A começar dentro de casa.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.