Bolsonaro e a síndrome de Marty McFly: estamos de volta aos anos 80
Matheus Pichonelli
10/06/2019 04h00
Cena do filme "De volta para o futuro"
Jair Bolsonaro é a versão brasileira Herbert Richers de Marty McFly, aquele personagem da franquia "De volta para o Futuro" que zanzava pelo tempo provocando estragos no futuro.
A caneta presidencial é o seu Corcel DeLoren prestes a caducar no Congresso: com ela, um país inteiro pode voltar dez anos no tempo desde a semana passada, quando o capitão brecou normas contemporâneas de trânsito, como a lei da cadeirinha infantil.
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O lema do novo governo é resgatar tudo o que é velho. Nas leis de trânsito, por exemplo, exames toxicológicos sobre quem mais pode causar estragos em caso de acidente serão dispensados, como no tempo das diligências.
E os radares e lombadas serão aos poucos tirados de cena para que os brasileiros de bem voltem a sentir o prazer de dirigir, atropelar e se arrebentar em paz — e sem as viaturas do politicamente correto.
Maldosos dirão que se trata de legislar em causa própria, já que o presidente, três de seus filhos e a primeira-dama somam, juntos, 44 multas de trânsito nos últimos cinco anos. Disseram o mesmo quando foi exonerado o agente do Ibama que multou Bolsonaro por pescar em área proibida.
O esforço, porém, pode ser só sintoma de saudosismo crônico. Uma espécie de síndrome de Marty McFly.
Se fechar os olhos por alguns segundos, os fãs do capitão que foram às ruas em sua defesa no último dia 26 já podem se imaginar como se estivessem nos tempos dos escapamentos e dos automóveis possantes, quando era possível fumar, queimar o bigode e jogar as cinzas da ousadia e da alegria pelo quebra-vento.
Em alguns casos, será um retorno sem volta ao auge do porte físico, do vigor atlético, da virilidade facilmente confundida pelos tempos da ordem e da obediência — temos saudades, afinal, do "nosso tempo" porque no "nosso tempo" nossos corpos obedeciam imediatamente nossos comandos.
Vai ver é isso o que buscamos quando nos agarramos às normas e símbolos do nosso auge, e rejeitamos tudo o que soa novo e diferente, como as ideias de diversidade, consciência e juventude expressas em uma propaganda de banco cheia de cores, piercings, tatuagens e cabelos afro que precisou ser censurada.
"Retrocesso" se tornou a palavra da moda em cinco meses de governo, e não adianta mostrar que leis como a da cadeirinha diminuem o número de mortes de crianças e adolescentes nos acidentes de trânsito em até 60%.
Os novos tempos trouxeram de volta a pochete e o conhecimento místico dos gurus e feiticeiros. Iluminismo, ciência e inovação são agora papo de comunista.
Assim, com outras duas canetadas, sobre porte e posse de armas, o presidente pode também mandar um país inteiro para a virada do século, quando os assassinatos por arma de fogo cresciam em média 5,5% nos 14 anos anteriores ao Estatuto do Desarmamento. Entre 2003 e 2017, a taxa caiu para menos de 1%, mas o capitão acha que precisa mudar isso aí, taokey?
"Mas os especialistas dizem!", dirá o iluminado e doutrinado leitor.
"Tem que mudar os especialistas também, taokey? Nada de dinheiro para pesquisa, nada de verba para universidade, nada de gente pensando soluções para o futuro sem as ferramentas enferrujadas do passado, taokey?".
Seguindo seu mestre, até o ministro da Cidadania, Osmar Terra, decidiu comprar briga contra a ciência e, com base em uma volta empírica por Copacabana, contestou um estudo da Fiocruz, feita com mais de 16 mil pessoas, que negava haver uma epidemia de drogas no país — sem a tese da epidemia, não dava pra reeditar a guerra às drogas de Ronald Reagan nos anos 1980, em que todo mundo sabe, ou deveria saber, quem perdeu e quem ganhou.
No Brasil de 2019 é assim: se os estudos apontam, não vai ter mais estudo, taokey?
Não era exatamente um lema de campanha, mas ninguém pode se dizer surpreso.
Antes da eleição, o então candidato do PSL já havia se aliado com monarquistas e fãs da ditadura. E, em ao menos uma entrevista, ele prometeu transformar o Brasil em um país "semelhante àquele que tínhamos 40, 50 anos atrás".
Bons tempos!
Mas para quem?
Há exatos 50 anos, o Brasil vivia sob o AI-5, que autorizava o presidente a decretar o recesso do Congresso, intervir nos estados e municípios como bem quisesse, cassar mandatos parlamentares, suspender direitos políticos de qualquer cidadão, confiscar bens considerados ilícitos e suspender sua garantia do habeas-corpus caso você fosse preso por engano — ou por discordar de ideias ou piadas ruins.
Ao fim daquele regime, nos anos 1980, quatro em cada dez brasileiros não sabiam ler nem escrever. Ensino superior era privilégio. A inflação passava dos 100% ao ano. E a taxa de mortalidade infantil era 53% maior do que a atual.
Então por que as referências daquele tempo são a inspiração?
Freud, se não for banido das universidades, talvez ajude a explicar.
O problema de Bolsonaro, como qualquer observador da psicanálise pode ver, não é com a esquerda, com o coitadismo, com o feminismo ou com o globalismo. É com o século 21.
No ritmo atual, chegaremos a 2022 sem vacinas, sem direito ao voto feminino, sem penicilina e sem pílula anticoncepcional.
Se tudo der certo, Copérnico será limado dos livros que restarem por insistir até sua morte, em 1543, que a Terra era redonda.
Se a moda pegar, o terraplanismo governamental será nossa viagem sem volta ao tempo das cavernas, tomadas de homens barbados, brutos, sem livros e sem acesso ao Google — porém, viris.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.