Brasil que defende tortura e mata índios não está polarizado. Está demente
Matheus Pichonelli
01/08/2019 04h00
O presidente Jair Bolsonaro (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Antonio Prata tem razão em dizer que não estamos dando nome aos bois quando tratamos do governo Bolsonaro, e que falhamos miseravelmente toda vez que enquadramos como "polêmicas" e "controversas" as falas recentes do presidente sobre desmatamento, jornalistas, cinema e nordestinos.
"Polêmico" é gostar de Engenheiros do Hawaii (eu, inclusive, gosto).
Como bem lembrou o escritor e cronista, as declarações do capitão são mentirosas, autoritárias, dirigistas, preconceituosas e ofensivas.
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A lista cresce em proporção geométrica, e já na segunda-feira se somava ao deboche pela morte do pai de uma criança de dois anos durante a ditadura. Essa criança é hoje o presidente nacional da OAB.
Não era, novamente, uma fala "polêmica". Era desumana, cruel, estarrecedora, e deveria ser enquadrada como crime de responsabilidade.
Se alguém acordou normalmente no dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, é porque a miséria da nossa gramática consagrou o senso-comum como a única resposta para uma realidade que já não conseguimos captar – ou por preguiça, ou por pura incapacidade. Essa pobreza sintática nos leva a uma precária noção de mundo – é como querer pintar uma cidade de infinitas nuances cromáticas com apenas duas cores disponíveis. Vai sair um borrão.
Um borrão recorrente das análises mais empobrecidas é que vivemos em um país "polarizado" – como se, na última eleição, não houvesse outras 12 opções além de um candidato que profere mentiras e homenageia torturador em rede nacional.
Quem observa as pesquisas de opinião pode, de fato, imaginar que há muita gente querendo coisas muito diferentes e expressando isso nas ruas, e nas urnas, sem que uma maioria clara esteja consolidada.
Mas, como diria Renato Russo (polêmico, eu sei), estamos medindo forças desiguais.
Bolsonaro não representa um grupo que aceita e pensa simplesmente diferente dos demais. Representa a trucidação da diferença. E isso, em si, é uma diferença de forças muito desproporcional quando deste lado está o presidente da República.
Polarização pressupõe uma disputa simétrica de forças separadas por diferentes convicções. Mas nem tudo é questão de "opinião" no Brasil de 2019, sobretudo quando ter opinião se confunde com a defesa da morte e da tortura de quem não pensa igual.
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Isso não significa que não existe lado nessa história. Eu tenho o meu, e ele me leva a repetir diariamente a quem já não consigo manter uma conversa minimamente civilizada sem ser alvo de ataques de todo tipo: "discordo e repudio sua fala sobre os vivos, os mortos e os desaparecidos, e considero aviltante alguém usar a vitória nas urnas para arrumar uma boquinha para um filho na embaixada dos EUA, mas jamais seria capaz de desejar a você o que você deseja para mim, para a minha família, para meus amigos, para todo mundo que não pensa como você".
Dizer, em alto e bom som, que não importa o que a pessoa faça, diga e represente, ela não merece ser torturada, nem ter a memória trucidada diante dos filhos que não puderam enterrar os pais, nem dos pais que não enterraram os filhos, não é questão de "opinião". É ter a mais básica noção de humanidade. É o que na minha terra chamam de "caráter".
Na peça "Antígona", Creonte herda o trono e proíbe que o corpo de Polinice, morto em uma batalha, fosse sequer enterrado. A peça é sobre a vilania de quem tripudia sobre os mortos, e essa vilania é atualizada todos os dias cada vez que alguém sapateia sobre a memória de quem já não está aqui para se defender ou aplaude quem rasga placas em homenagem a quem morreu por uma causa.
Quem acredita que a suposta "polarização" dá conta de explicar o Brasil atual parte do pressuposto de que há concordâncias básicas sobre valores, mas discordâncias sobre os caminhos para se construir um país melhor. Não é.
Enquanto uns reivindicam o direito a existir, há quem manifeste o desejo de destruir – florestas, povos indígenas, adversários, a memória e o compromisso com a verdade. Não há lados iguais quando um desses lados quer apenas a morte e a destruição. (Ou, por acaso, alguém está acuado com declarações de índios que nos acusam de viver como animais e ameaçam transformar nossas casas, terras e modos de vida em uma grande reserva com ocas e arco e flecha? A inversão da ofensiva, por impensável, soa ridícula).
A limitação da nossa gramática é a limitação das nossas visões de mundo e das formas de estar neste mundo. É necessário dar nome aos bois e não cair na armadilha confortável do senso comum.
Esse senso comum diz que o Brasil está polarizado. Não é verdade. O Brasil está demente, com a memória e capacidade cognitiva comprometidas por palavras que não expressam uma verdade, mas impressões da realidade. E terá cada vez menos noção da própria demência quanto mais naturalizado como "controverso" o que no dicionário é puro ódio e destruição.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.