O mundo pré-pandemia não existe mais. Mas como será este outro mundo?
Matheus Pichonelli
13/04/2020 04h00
Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil
No posto de gasolina, vejo do banco do passageiro o frentista se aproximar fazendo mímica. Era o mesmo cara que outro dia mesmo abria um sorriso quando nos via, brincava com nosso filho e perguntava do Verdão.
Sisudo, ele mantém distância e evita conversa. Nós também.
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Na saída de casa, a equipe da portaria corre para fechar a janela da guarita quando passo a pé a caminho da padaria. Nosso contato é visual, um conjunto de sombras desenhadas em vidro blindado que se comunica entre máscaras e polegares – e eu não sei mais quem está do lado de dentro, se José, João ou Maria.
No caixa do supermercado, a recomendação de ficar a um metro e meio do próximo carrinho produz a sensação de uma fila alargada composta de ilhas cercadas de mantimentos por todos os lados. Cada um passa na esteira o máximo que consegue levar.
À minha frente, uma senhora de estilo quatrocentão elogia as novas medidas antissépticas do estabelecimento. "Podia ser assim sempre", diz.
A moça do caixa faz que sim com a cabeça. Essa distância entre nós, a cliente parece dizer, é melhor manter: você aí, eu aqui.
Faz quase um mês que começou nosso esforço coletivo para reduzir o contato social, e para muita gente ainda é difícil lidar naturalmente com tanta impessoalidade.
Em tempos anormais, essa impessoalidade é ativo. Em Taiwan, apenas cinco pessoas haviam morrido por coronavírus até a semana passada, e uma das razões para isso são os fatores sócio-político-culturais e tecnológicos do país, explica o fisioterapeuta Kevin Tai em relato para a "Folha de S.Paulo": lá existe muito pouco contato físico. Saudar e se despedir é no máximo com um aceno de mãos ou cabeça e o uso de máscaras já era comum no dia a dia.
Pouco antes da quarentena, passei dez dias fora do Brasil e uma das coisas que mais estranhava era circular em ambientes rarefeitos de afetuosidade – mesmo entre pessoas polidas, educadas e atenciosas, era raro ver aquela troca visceral de fluidos tipicamente brasileira nos nossos abraços pelas ruas, inclusive com desconhecidos. É o que faz do Carnaval ou de uma partida de futebol nos estádios eventos diferentes de qualquer lugar do mundo.
Voltaremos a ser assim um dia?
A essa altura, o mundo pós-pandemia parece bifurcado. Não só dentro de casa.
Ao menos por aqui, há quem já manifeste desejo de imitar o eu-lírico da música do Zeca Baleiro e, ao fim do isolamento, sair mandando flores ao delegado, bater na porta do vizinho, desejar bom dia ou beijar o português da padaria. Mas na outra ponta pode estar um receio do outro que beira a frigidez. É como se não houvesse meio-termo entre a abstinência pregada pela Damares Alves e um futuro Carnaval fora de época, lírico e apoteótico, como em 1920.
No fim de março, ficou famosa uma entrevista em que o biólogo e divulgador científico Atila Iamarino disse à "BBC Brasil" que o mundo de antes do coronavírus não existe mais.
Essas mudanças, disse ele, eram decorrentes da descoberta, pelas empresas, do quanto as pessoas podem produzir trabalhando em esquema home office, do quanto os alunos aprendem por conta própria em casa, de quais são serviços de fato essenciais, as vulnerabilidades do sistema de saúde e do regime de trabalho moderno, a importância de se usar sistemas de venda online, de pagamentos sem contato – mudanças, segundo ele, que o mundo levaria décadas para implementar não fosse a pandemia.
Como me disse, em uma entrevista (ainda a ser publicada), a arquiteta e designer Rita Wu, agora ficou mais nítido como estávamos alienados do nosso sistema de produção, como a logística e dependência de centros produtores globais era absurda e como já não conhecíamos os processos, a matéria-prima do que consumimos – e como, a exemplo dos grupos makers, tivemos de reaprender a fazer a própria comida e a própria faxina (no meu caso, evitando até mesmo abusos etílicos para não quebrar o pacto da imunidade e precisar correr ao hospital em tempos de quarentena).
Para outro texto, ouço a autora de livros infanto-juvenis Andrea Taubman dizer que da pandemia sairá a consciência sobre o confinamento do nosso sistema de ensino, conteudista, fechado, sem interações reais, artísticas, culturais. Na quarentena, até as hierarquias alimentadas naquele ambiente altamente competitivo do pátio e da sala de aula ruíram: todos agora estão na mesma, e ninguém está melhor que ninguém.
Este novo mundo, não exatamente admirável, pode ser promissor. É o que aposta o cantor uruguaio Jorge Drexler, que se curou da doença e disse, ao jornal "O Globo": "A mensagem que o vírus traz é que somos bichos, parte do organismo vivo que é o planeta. Somos vulneráveis à natureza. É preciso uma atitude diferente com a biosfera. A crise traz o fim das opiniões, o que importa são os fatos, a ciência, a medicina. É um retorno ao conhecimento, à razão. Não estamos esperando um milagre, mas a vacina. Se sairmos dessa com 5% de humildade, terá valido algo".
Na mesma edição, leio Sebastião Salgado lançar sua aposta: "Vamos ter de voltar ao planeta, à natureza, às outras espécies. Por que estamos sendo atacados assim? Porque é muito fácil. O ser humano saiu do planeta. Os países são formados por enormes concentrações urbanas, e hoje uma catástrofe atinge todo o mundo quase imediatamente. Somos aliens dentro do nosso próprio planeta. Quem somos nós? Qual nossa relação com a natureza?".
Para ele, é nas grandes catástrofes que surgem as grandes solidariedades e reais preocupações com o futuro da humanidade.
Essa preocupação será perene? Gilberto Gil desconfia. "Em todas as situações-limite em que a solidariedade parece ser um apelo compulsório (esse é o caso, agora), pensamos se não deveria ser assim o tempo todo. E acho que, de fato, avançamos um pouco a cada desastre, a cada catástrofe", disse ao "Estadão". "No entanto, nunca chegamos a alcançar a redenção total. Não sei por que é assim, mas é assim. Acho que esse grande surto de solidariedade e compaixão de hoje depositará, mais uma vez, seus resíduos positivos no amanhã."
Nessas horas a música ajuda a lembrar que nada será como antes amanhã. Que o novo sempre vem. Mas como será o amanhã? Talvez só um pensamento desejoso. Ou um anúncio da nossa antiga insustentabilidade do ser. A essa altura, só queremos estar vivos para ver.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.