Chama o síndico! Tretas de condomínio viram poço de estresse na quarentena
Matheus Pichonelli
03/08/2020 04h00
(iStock)
Me chame de seu Gervásio e eu não atenderei. Meu nome, como devem ter percebido pela inscrição acima, é Matheus.
Mas, em casa, o apelido pegou como praga desde que passei a receber o espírito de um antigo vizinho do prédio onde passei a infância. Ele era uma espécie de dona Perpétua da novela "Tieta". Não por acaso Perpétua era o nome de sua companheira de matrimônio, vigilância e delação.
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A hiperatividade policialesca de seu Gervásio é citada no processo de canonização do seu Odair, o síndico do condomínio que, além de santo, era devoto de são Gerúndio. Isso devido ao emprego da locução verbal sempre que era acionado às duas da manhã para ouvir, do outro lado da linha, que a molecada andava fazendo sem-vergonhice, fumando droga ou cantando Raimundos acima do tolerável.
"Vou estar tomando providências". "Vamos ter que estar te enviando uma multa que vai estar doendo no seu bolso". E por aí vai.
Que Deus os tenha, mas que os guarde amarrados quando vierem em forma de entidade para assombrar meus humores toda vez que ando pela quadra, devidamente paramentado, ao fim da tarde. É nessa hora que recebo o espírito do antigo vizinho, manifestado no comichão para pegar o WhatsApp e enviar o áudio (que rascunho e nunca mando) para o síndico contando que a juventude está trocando fluidos e abraços e compartilhando ombro a ombro na mesma quadra EM PLENA LUZ DO DIA.
Sim, a quarentena me transformou num possível delator, mas tenho tomado providências para expulsar as entidades antes que eu comece a perambular pela vizinhança como fantasma, de pijama, pantufas e binóculos depois da canja às quatro da tarde.
Em mais de cem dias de quarentena, ninguém que sobreviveu ao contágio (e não teve pessoas amadas infectadas, claro) sofreu mais com os humores alterados pela pandemia do que o síndico ou a síndica.
"A treta é diária, das 6h às 5h59", conta uma amiga, sob anonimato, que trabalha em uma administradora de condomínios e em tempos pandêmicos tem sido mais demandada do que as forças de estabilização e paz da ONU.
A razão é matemática: mais gente em casa, mais conflito produzido em horário comercial. Sobretudo para quem tem criança, há meses sem poder descarregar a energia acumulada nos playgrounds dos prédios e condomínios onde os moradores viraram lobistas da própria causa.
Sobra para o síndico mediar, sob ameaças recorrentes de impeachment e processos judiciais, os inúmeros pedidos para abrir/fechar as áreas comuns e/ou tomar providências contra quem se aglomera em volta da quadra esperando sua vez de jogar.
Entre as reclamações mais comuns está a de vizinhos incomodados com o bate-bola dentro de apartamentos. E as denúncias nos grupos de WhatsApp contra quem agora circula sem máscara.
No BBB do condomínio, todo mundo sabe quem testou positivo para covid-19 e ainda assim desceu para levar o lixo.
"O fato é que começaram a reparar muito mais na vida alheia. Todos sabem quem está recebendo visitas em casa. Quem está fazendo churrascos. Quantas vezes o vizinho vai ao mercado. Quantas vezes brigou com o filho. Até o cachorrinho que antes não incomodava virou transtorno", conta uma gerente do caos em processo também de canonização.
Há alguns dias, perguntei à DataRede, a lista de amigos das redes sociais, como é ser síndico em tempos de pandemia. Os desabafos vieram em toneladas.
Das encrencas mais pesadas que me contaram está a história da síndica de um prédio do interior que teve de tomar uma decisão a respeito de quatro arquivos de áudio gravados por uma senhora que monitorou por duas semanas as atividades sexuais do vizinho solteiro que recebia visitas às terças e quintas, sempre pela manhã. O moço recebeu uma notificação para pegar leve na atividade sonora. E a delatora recebeu um alerta de que expor a vida privada das pessoas era crime.
Em outro prédio da mesma cidade, uma moradora cansada do isolamento decidiu vestir o biquíni e tomar sol no parapeito de um apartamento sem sacada –gerando aglomeração de olhares curiosos e pânico pelo risco de despencar a qualquer momento. Sobrou, claro, para a síndica.
Na maioria das vezes, o fio de tensão é solto pelos motivos mais banais. Dias atrás, a síndica do prédio onde mora uma amiga, em São Paulo, colocou no elevador um aviso de que as obras poderiam ser retomadas, desde que seguidas algumas regras. Uma vizinha colou um textão ao lado dizendo que não era hora de retomar as obras coisa nenhuma. E deixou um espaço para votação. Outra vizinha colou um bilhete indignada com a falta de empatia de quem pretende fazer obras numa pandemia. Até que os papéis desapareceram e foram substituídos por uma circular da administradora lembrando que não se pode colar cartazes nas áreas comuns.
Teve o caso também de um síndico que precisou tomar providências após uma vizinha encharcar o elevador de álcool em gel e provocar um curto-circuito, além de um prejuízo considerável, na geringonça.
Ouvi ainda a história de um morador que cansou de ouvir a reclamação do vizinho de baixo e arremessou o cocô do cachorro, o pivô da querela, no quarto do reclamante.
E de um advogado que enviou um manifesto ao síndico porque precisou interromper uma disrupção intestinal duas vezes para atender ao interfone da portaria que tocava insistentemente. No documento, repleto de detalhes sobre suas disfunções, ele alegou perseguição por parte do condomínio. "Isso demonstra bem como está o estado psicológico das pessoas", resume uma amiga.
Os episódios jogam uma nuvem de desconfiança na ideia de que a pandemia ajudaria os seres humanos em geral, e os que vivem em condomínio em particular, a repensarem hábitos e reforçarem os laços comunitários de solidariedade. Uma gargalhada tensa é como a maioria dos síndicos com quem conversei responde a essa suposição.
"Vimos, sim, muitas demonstrações de empatia e solidariedade. Tenho relatos de vários condomínios que souberam de pessoas doentes, foram aos mercados para eles, ajudaram idosos. Que fazem campanha para terem mais paciência com barulho", diz a amiga.
"Mas o que realmente assusta é a quantidade de pessoas que se comporta como se isso tudo fosse mentira. Viver em condomínio é gerenciar o coletivo e muitas pessoas não sabem viver na coletividade. Toda semana alguém tenta reservar o salão de festas. E toda vez os funcionários precisam explicar que o salão não está aberto e são xingados, ouvindo que eles estão contribuindo para uma farsa. Sobrou para os síndicos a obrigação de controlar a vida das pessoas."
Outra amiga resume: "Tem uma galera fazendo home office e acha que não pode ter barulho porque está trabalhando ali o dia inteiro. E não é assim, né? Os vizinhos fazem o que com as crianças? E os adolescentes que querem tocar instrumento? Vontade de dizer 'o mundo não parou porque você está trabalhando de casa, alecrim dourado'".
Na laje do velho edifício por onde perambula como alma penada, o espírito do seu Gervásio sorri satisfeito. Alguém vai querer mesmo se candidatar a síndico na próxima assembleia?
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.