Com Kamala Harris na briga, pesadelo iniciado em 2016 estará perto do fim?
Matheus Pichonelli
13/08/2020 04h00
A senadora e pré-candidata à vice-presidência dos EUA, Kamala Harris (Tom Williams/CQ-Roll Call, Inc via Getty Images)
No meio do caminho havia um protesto naquela caminhada despretensiosa pela avenida Paulista em outubro de 2016.
Curioso, me aproximei para saber qual era a da rapaziada de cabelo acaju no Brasil do pós-impeachment. O que pediam? O fim do preço abusivo dos transportes públicos? Mais ciclovias? A paz mundial?
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A resposta estava numa das muitas faixas onde se lia o nome do então candidato a presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Entre os entusiastas da candidatura do empresário e ex-apresentador de TV estava um cover do Axl Rose com um cartaz que estampava, ao estilo "procura-se" de faroeste, um sujeito de óculos e suspensórios sob a inscrição: "Olavo tem razão".
Ao lado, Hillary Clinton, a candidata democrata da disputa, surgia em uma jaula. Em outra placa, ela e o então presidente americano Barack Obama sorriam acima da legenda: "Eles nos roubaram".
Numa miscelânea que nem o tropicalismo nem o manifesto pau-brasil conseguiram imaginar, voavam sobre as cabeças as bandeiras do estado de São Paulo, do Brasil, de Israel e dos EUA –muitas.
A aglomeração se concentrava em frente a um banco multinacional.
Tudo era caricato demais para ser verdade. Mais caricato do que o arquétipo do Almeidinha, personagem inventado pelos amigos da faculdade que representava tudo o que não queríamos (e prometíamos não) ser quando a vida adulta se impusesse: um sujeito ignorante, americanoide, reacionário, avesso à cultura popular brasileira, falsamente patriota, arrivista, frustrado, ressentido e brutalizado pelas próprias convicções.
Era tão improvável reunir tantos predicados num mesmo escopo que aquele protótipo soava como piada. E a piada começava a perder a graça ao desfilar orgulhosa pela avenida mais famosa do país.
"Agora vai, hein?", disse um amigo, me cutucando com o cotovelo e rindo litros da pretensão tupiniquim de enviar, daqui, boas vibes para o candidato azarão das eleições americanas. Àquela altura, Trump comia poeira nas pesquisas de intenção de voto para a Casa Branca.
Era claro que aquele bufão alaranjado, a versão americana do Almeidinha cuja obsessão era construir um muro na fronteira com o México, não venceria.
A corrida logo seria esquecida, e ele voltaria a ser só um nome nas torres cafonas de sua empreiteira e o figurante de uma cena em que atende o telefonema do filho riquinho, arrogante e desleal no filme "Os Batutinhas" *. Governar a maior potência militar do planeta, imagina?
Naquele entorno, algumas nuvens começaram a se formar quando um grupo antifascista cercou os manifestantes.
Começou um bate-boca.
Alguém tentou arrancar a bandeira americana.
O manifestante se defendeu.
O pau da bandeira quebrou na cabeça de um.
Foi então que o primeiro soco estalou.
Outros se sucederam, entre pontapés e voadoras.
Coisa fina.
Quem não entrou na briga começou a pedir ajuda à PM, que até então só observava. Um antifa foi pego pelo cangote por um soldado. Apanhou muito antes de ser levado para um canto, com as mãos para cima. A ele se juntaram outros dois.
Com as bandeiras definhadas, mas protegidos, os fãs de Donald Trump começaram a gritar palavras de ordem como numa torre de Babel. "Sergio Moro, estou com você", dizia um diante das câmeras. Outros estimulavam a violência da polícia contra quem vaiava o ato.
A polifonia ganhou um princípio de coro quando o primeiro começou a cantar: "Brasil, urgente, Bolsonaro presidente".
Quem? Ah, sim, aquele deputado nebuloso do fundão do Congresso, que em 30 anos nunca aprovou um projeto de lei, tarado por armas e torturadores, que prometia bater, prender, socar, matar 30 mil brasileiros e dar um golpe assim que assumisse? KKK. Cada ideia.
Ainda assustado e sem entender exatamente o que queriam aquelas pessoas (o fim da corrupção, como mostram agora os cheques de Fabrício Queiroz, não era), me lembro daquela manifestação como um anteparo do que viria pela frente. Havia um princípio de tornado na frente daquele banco estrangeiro. Uma espécie de explosão que poderia ou não ser contida. Uma caixa de Pandora que se abriu e nunca mais fechou.
"Relaxa, é só um grupo minoritário. Um bando de malucos. O Brasil não é isso aí, não", dizia o meu amigo, fazendo pouco caso da minha preocupação.
O resto é história.
O playboy que o pequeno grupo de brasileiros exaltava não só virou presidente dos Estados Unidos como se tornou o chefe informal de um bajulador eleito na mesma onda por aqui. Tudo o que faz por lá é descaradamente imitado aqui.
Se mandar, seu preposto em Brasília é capaz de pular no poço de cloroquina e ainda dizer "eu te amo". Alguém ainda vai provar que foi Donald Trump quem mandou o congênere deitar, rolar, fingir que morreu e oferecer remédio para a ema, só para se divertir com as imagens do subalterno numa roda entre amigos.
Juntos, os presidentes carne-e-unha e almas-gêmeas se tornaram sócios no desastre de uma pandemia que matou 164 mil pessoas até aqui num país e mais de 100 mil, no outro.
Na última terça-feira (11), o pré-candidato democrata Joe Biden, favorito contra Trump na disputa pela Casa Branca, anunciou, após semanas de atos antirracistas pelo país, que a senadora pela Califórnia Kamala Harris será a candidata a vice em sua chapa. Ela será a primeira mulher negra a concorrer ao cargo.
Trump, o machão que fala com o dedo erguido enquanto a companheira-troféu enfeita o cenário, correu como um garoto da quinta série às redes para fazer troça da escolha. "Kamala falsa", ele escreveu. Faltou chamar de feia e boba.
Era uma forma de acusar o golpe.
O anúncio me fez voltar quase quatro anos no tempo, quando ser adulto ainda tinha seu charme, ao menos entre as figuras públicas.
O anúncio de Kamala, que já criticou Bolsonaro pela omissão na questão ambiental, talvez seja o começo do fim daquele pesadelo em que mergulhei quando resolvi caminhar pela Paulista no já distante 2016 e que nunca mais acabou.
*Erramos: inicialmente, escrevi que o riquinho de "Os Batutinhas" havia sido interpretado por Macaulay Culkin, mas na verdade o ator era Blake McIver Ewing.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.