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Matheus Pichonelli

"Com criminalização da homofobia, mundo fica mais chato": para quem?

Matheus Pichonelli

17/06/2019 04h00

Cena do filme "O mau exemplo de Cameron Post"

Minha mãe entrou no provador.

Entre um balcão e uma escada em caracol, fiquei conversando com o atendente da loja, que subia e descia do estoque com outras opções de números e cores das roupas para a cliente.

Até que o alarme da escola soou.

Em fila indiana, os alunos cruzavam a praça da pequena cidade, onde estávamos a passeio, e começaram a gritar e fazer gestos em direção à loja.

"Bicha! Bicha!"

É assim todo dia, explicou o atendente: dava o horário, os alunos que já entravam na adolescência cumpriam o ritual entre galhofas e xingamentos.

Todo santo dia.

Eu devia ter 18 anos quando testemunhei a cena.

Aqueles xingamentos tinham endereço certo (um homem homossexual que trabalhava na loja de uma pequena cidade do interior onde aquela hostilidade era naturalizada) mas de certa forma me atingiam: de dentro da porta de vidro, me via pela primeira vez do outro lado da história.

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Anos antes, se morasse e estudasse naquela cidade, eu provavelmente seria um daqueles meninos que provocavam calafrios em um trabalhador honesto e dedicado toda vez que ouvia o alarme soar.

De onde eu vim, chamar alguém de "viado" era um teste de virilidade. Se o interlocutor respondesse com um soco, estava autorizado a andar com os rapazes, a turma do fundão, onde todo signo ou adjetivo relacionado ao feminino estava proibido. O nome disso, hoje sabemos, é masculinidade frágil.

Da letra L ao V, vivíamos em pânico para não cair na letra 24 da chamada, o número do "veado" no jogo do bicho. Era um apelido pegajoso para o resto da vida.

Nossas referências eram todas masculinas, do esporte aos filmes, passando pela música.

Se falhássemos em qualquer missão, sobretudo no papel de predadores, a reprimenda era sonora: "larga de ser bicha".

As únicas figuras femininas daquela iniciação cabiam apenas nas revistas que roubávamos dos nossos pais.

Em casa ou nas festas de aniversário, quem experimentasse dançar como as meninas recebia bifas dolorosas na orelha até que a cintura fosse definitivamente desativada para qualquer movimento se não a linha reta da "normalidade". O resto era desvio, e o desvio estava nas cores, nos símbolos, no jeito de andar, falar, ouvir (a depender da música).

Medo de quê?

Já adulto, encerrei um extenso plantão no jornal e fui procurar um lugar para jantar na avenida Paulista. Encontrei um amigo do trabalho, que me apresentou o namorado. Ele perguntou se estava a fim de jantar com eles, e desconversei, mudei a rota. No fundo, tinha medo de ser vistos com eles. Medo de quê?

Do que meus pais pensariam? De alguma família tradicional brasileira se horrorizar? Dos comentários do chefe na segunda-feira?

Até hoje, quando vejo aquele amigo, tenho vontade de pedir desculpas. Eu não sabia o que fazia. Na verdade, sabia.

De onde vinha aquele receio?

Decerto, não tinha nascido nos jovens que cruzavam a praça e faziam o atendente da loja – e todos os amigos que desapareciam do nosso círculo – sonhar em viver em outro lugar, para longe, onde realmente fosse considerada justa toda forma de amor.

O exemplo vinha de cima: do deputado, agora presidente, que prefere ter um filho morto em acidente a ter um filho homossexual, das brincadeiras do chefe e do professor, da piada do humorístico do sábado à noite a ridicularizar falas e trejeitos, do personagem engraçado/desajeitado da novela, dos exemplos de superação no esporte e nas páginas da História, todas dominadas pela bravura de quem associou sensibilidade e aceitação de vivências a fraquezas morais, como uma frouxidão de caráter.

O mau exemplo

O medo vinha da violência, e a violência era uma ideia de correção, como mostrado no filme "O Mau exemplo de Cameron Post", em que uma jovem, flagrada aos beijos com uma amiga, é levada para um internato para "curar" o desvio, entrar no caminho, aprender sobre o amor. "Que amor", pergunta a personagem a certa altura, "se aqui somos ensinados a ter nojo e a odiar nossos corpos?".

Corta a cena e vemos agora a ministra de Mulheres e Direitos Humanos, Damares Alves, observar não apenas homoafetividade no desenho animado inocente, mas uma perversa estratégia "do cão".

Vemos também campanhas de boicote de empresas engajadas na inclusão. Propagandas de diversidade censuradas. Discursos de como tudo aquilo fere quem é "normal".

Da infância ao mundo adulto, observei em silêncio uma diáspora de talentos e amizades buscar refúgio em qualquer outro lugar onde não fossem alvo de chacota, na melhor das hipóteses, ou da agressão, na pior delas. Quantos simplesmente não deixaram de estudar pelo simples medo do caminho de casa até a escola?

Onde estavam os responsáveis que não viam o grau de sofrimento nos próprios alunos? Onde estavam os gestores nas empresas que não viam problema nas piadas contra quem só tinha a opção de "aceitar", rir de si, ou adoecer?

Na roda de pais da escola, agora vejo o sujeito que descreve o horror em ver duas pessoas do mesmo sexo de mãos dadas na lanchonete ("na frente dos meus filhos!"), sendo acompanhado do olhar bovino de aprovação dos outros pais à mesa. Como explicar que ser contra casamento igualitário só dá a ele o direito de não casar com a pessoa do mesmo sexo, e não de impedir que alguém o faça e seja feliz?

Na vizinhança, ouço também o horror do pai de família "obrigado" a passar pelo ponto de prostituição de mulheres trans a caminho de casa – o mesmo que não quer que aquelas pessoas dividam as fileiras com os filhos em sala de aula e busquem outro caminho se não "poluir" a sua vista imaculada.

O crime e a lei

Num instante, volto de tempos em tempos àquela viagem, quando minha mãe entrou no provador da loja da cidadezinha, lembro dos xingamentos contra o atendente e por alguns segundos, insuportáveis segundos, experimento o desprezo de desconhecidos que sequer entendem a própria raiva, mas a alimentam diariamente sob o mantra de que tudo não passa de brincadeira.

Histórias assim me vieram aos montes enquanto escrevia sobre como as empresas têm tomado a dianteira nessa discussão, com grupos LGBT engajados em mudar a cultura e a sintaxe do ambiente de trabalho.

Aos trancos, é possível sentir o vento das mudanças, como sinalizou, na quinta-feira, dia 13, o Supremo Tribunal Federal, ao decidir, por 8 votos a 3, que homofobia e transfobia agora são crimes no Brasil, como é o racismo, passível a prisão.

A reação era esperada: "mas o mundo está muito chato mesmo, hein?", disseram os condenados a viver para sempre na turma do fundão.

Penso, então, em todos os amigos que expulsamos de nosso convívio, por nossa culpa, nossa tão grande culpa, e agora me pergunto: esse mundo ficou chato para quem?

Quem sabe agora, deixando claro o que é crime e o que é brincadeira, sem zona cinzenta, ao menos na lei, saibamos de cor a lição. Só nos resta aprender.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.