Goste-se ou não, entrevista de Felipe Neto ao Roda Viva já é histórica
O youtuber Felipe Neto será o entrevistado do programa "Roda Viva", da TV Cultura, nesta segunda-feira (18).
Se lesse essa frase há pouco mais de um ano, pensaria que o mundo está ao contrário e, como na música, ninguém reparou. Pior: eu me chocaria comigo mesmo se dissesse que estou ansioso para saber o que ele tem a dizer.
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Pois é, você que me lê no passado, o mundo mudou. Só você não reparou.
Da entrevista pode não sair nenhuma sentença que algum escritor russo do século 19 assinaria, mas ela, em si, já é histórica.
Felipe Neto é desses fenômenos juvenis que você, boomer ou millennial das antigas que adora uma caixa, não sabe exatamente quem é, o que diz nem a qual categoria pertence. O fato é que, quando você ouviu falar dele pela primeira vez, ele já tinha um canal com 38 milhões de inscritos na principal plataforma de compartilhamento de vídeos do planeta.
Seu último vídeo foi assistido por 3,4 milhões de pessoas e sua última postagem fixada no Twitter tinha 78 mil retuítes e 9,2 milhões de visualizações. Num dia bom, o principal telejornal do país celebrou, recentemente, uma audiência de cerca de 7,5 milhões de espectadores.
Quem trabalha com comunicação convive há anos com a palavra "impasse".
Impasse não é crise.
Impasse é quando um veículo tradicional não tem mais a relevância de antes, mas as novidades de agora não têm força ou prestígio suficiente para destronar o modelo antigo. É como se duas forças opostas se anulassem e quisessem o que só um dos lados tem.
Nas redes sociais, dinossauros e jovens influencers se encontram numa pororoca que resulta, até aqui, num estranhamento mútuo.
Quem forjou opiniões pela curadoria dos quadradinhos das páginas nobres de veículos impressos uma hora dessas se pergunta o que terá a dizer, num prestigiado programa de entrevistas e debates, o rapaz que viralizou após espalhar milhares de copos de plástico (cheios) na casa do irmão famoso por imitar uma foca numa banheira de Nutella. Era uma retaliação à trollagem do irmão que encheu seu quarto de areia e promoveu um pagodão no box de seu banheiro.
Eu ri.
Meu filho, de 6 anos, riu.
Daí vai uma distância até ver o youtuber bem sucedido na cadeira que, uma semana antes, foi ocupada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal – e que já colocou na roda artistas, escritores, chefes de Estado e outras personalidades com o selo de especialistas.
Por quê?
Felipe Neto é exemplo de um adolescente, ou jovem saído da adolescência, cujo processo de amadurecimento ocorreu quase junto com as ferramentas eletrônicas de hoje. Há dez anos, ele postava seu primeiro vídeo no YouTube. O botão de curtir do Facebook tinha apenas um ano de idade.
Ele reconhece que fez (e registrou) muita bobagem de lá para cá. Se você já foi jovem um dia, sabe que hoje tem só dois tipos de adultos em nosso convívio: os que se arrependem do que fizeram na juventude e os que seguem fazendo bobagens.
Felipe Neto, aparentemente, evoluiu. Foi um dos primeiros influencers a perceber que seria cúmplice de uma catástrofe se ficasse quieto, com tanta audiência, diante dos devaneios do governo Bolsonaro. A oposição ao governo do capitão estava clara há um bom tempo, mas tudo ganhou outra dimensão quando declarou que quem se cala perante o fascismo era fascista.
Para muita gente, o momento de rompimento da tolerância foi quando o hoje presidente ainda era um deputado de baixo clero que usava arroba para falar do peso de pessoas negras. Ou quando prometia fuzilar adversários.
Para ele, foi quando Bolsonaro participou de atos com pedido de fechamento do Congresso e do STF.
Antes tarde do que nunca.
No centro do "Roda Viva" não estará um especialista em ciência política, mas alguém que se mostra disposto a aprender e levar alguma mensagem para quase 40 milhões de pessoas todos os dias.
Se você acha pouco é porque ainda pensa com a cabeça do dualismo que coloca em campos opostos militância e engajamento virtual, mundo físico e mundo eletrônico, vida real e vida em rede. (Dica: se você perguntar a alguém de 18 anos hoje se esse alguém "namora pela internet", automaticamente entrará na categoria do tiozão da Sukita – desculpe a referência – que perde a bola na pelada do fim de semana e diz que "telegrafou" o passe. Isso simplesmente não faz mais sentido, nem como ferramenta nem como linguagem).
No campo entre pessimistas e entusiastas pelo mundo das redes, confesso que não sei exatamente onde estou.
Como lembrou um amigo, a história da mídia nos últimos anos é a história de uma fragmentação sem precedentes. O que deveria ser ampliação é, neste momento, um paradoxo, já que se tornou a maior ameaça à democracia desde 1945 – vide o alcance de fake news e postagens picaretas que estraçalham os fatos e os entregam ao meio.
Nomes com capilaridade e influência como Felipe Neto e Anitta começaram agora a aprender sobre política e falar sobre democracia. Não qualquer democracia, mas uma democracia em risco de morte. Chamar para o centro da roda é aceitar que as saídas pedem agora um novo alcance.
Pode ser um erro estratégico dar a eles o peso do que John Lennon, que também botou a carreira em risco para protestar contra a guerra, chamou em uma música de "working class hero". Nem eles querem isso.
Em vez de ensinar, talvez nós (jornalistas, formadores de opinião etc) tenhamos algo também a aprender com quem tem hoje o domínio do engajamento digital. E com quem sabe que esse engajamento, se bem usado, pode servir de anteparo para uma tragédia anunciada.
Tem alguma dúvida?
Então tire de Jair Bolsonaro e seus seguidores fanáticos o engajamento digital que acumularam nos últimos anos e veja o que sobra. No mundo que acabou, não sobra nada. No que surgiu, é quase tudo.
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