Só um maluco? Por que não podemos reduzir Roberto Alvim à ala psiquiátrica
Matheus Pichonelli
20/01/2020 04h00
À direita, o agora ex-secretário Roberto Alvim em live com Jair Bolsonaro e Abraham Weintraub (Educação)
A demissão de Roberto Alvim da Secretaria Especial da Cultura, na última sexta-feira (17), pode levar alguns apoiadores do governo Bolsonaro a pensar que o anúncio de um edital tomado de referências ao ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels foi só um tropeço que precisou de uma correção de rota.
Não foi e, a essa altura, já não dá para ignorar que o caldo onde o agora ex-secretário escorregou já alimenta mais de 300 células neonazistas pelo país.
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Desde o começo, a gestão bolsonarista se tornou uma biruta de aeroporto que ora aponta para um filme de "Os Trapalhões", ora para um capítulo ainda inédito de "Handmaid's Tale".
O pronunciamento derradeiro de Roberto Alvim foi um pouco dos dois. Você assiste aquela peça e chega a rir de nervoso diante da presepada de quem imaginou que ninguém, em pleno 2020, perceberia o copia e cola. "Era só um paspalho inofensivo", alguém poderia dizer.
Em seguida, você começa a tremer (também de nervoso) lembrando que, mais preocupante do que assistir a um sujeito anunciar que a arte brasileira da próxima década será heroica e nacional, que estará profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo –"ou então não será nada"–, é saber que um presidente tão centralizador não deixaria um anúncio desta envergadura ir ao ar sem o crivo de alguém de cima.
"Mas era só um maluco perdido num governo de homens sérios", eles insistem. Sei.
Está certo que, se eu estiver passando na rua à noite e cruzar com aquele sujeito de olhar em transe hipnótico falando que a cultura vem aí para salvar a juventude, sou capaz de atravessar a rua e o Tietê a nado.
Só que a demissão do "maluco" não alivia o fato de que ele chegou onde chegou depois de chamar a atriz Fernanda Montenegro de "sórdida". Foi como abrir as cortinas para recolher os aplausos palacianos para si.
No vídeo, Alvim não plagiou apenas o ideólogo do nazismo, mas anunciou uma espécie de sarau de colégio que vai premiar, com dinheiro público, redações e outras manifestações artísticas que estejam em total acordo com um presidente que tem chilique ao primeiro sinal de contrariedade, que manda jornalista calar a bola, que prefere ter um filho morto a um filho gay, que louva torturador, que protege secretário de comunicação responsável pela verba publicitária dos fornecedores de sua empresa, que faz troça sobre pênis de orientais, cabeça de nordestinos e pergunta o que é golden shower no Twitter.
Com ou sem Alvim, são essas as diretrizes que seguirão tentando definir a nova sensibilidade estética brasileira, como já fizeram outros líderes megalomaníacos apoiados numa ideia de "maioria" que não corresponde sequer à vontade das urnas.
Quase cem anos depois da Semana de 1922, vamos engolir esse tipo de manifesto que tem a estética da perversidade como fundamento?
Porque, sinceramente, se for para patrocinar textos que discorram sobre a gênese da família brasileira, era melhor comprar logo um lote com os livros de Nelson Rodrigues. Está tudo lá, e isso permite dizer que, se o Brasil tivesse em outras áreas o nível de excelência de seus artistas, ninguém estaria catando os cacos da economia para medir nossos voos de galinha.
"Mas calma, era só um maluco". Era mesmo?
Na divisão das sesmarias do governo, os responsáveis pelas áreas de cultura, meio ambiente, relações exteriores e direitos humanos são recorrentemente mencionados como integrantes da "ala psiquiátrica" do bolsonarismo.
O próprio ministro da Educação, Abraham Weintraub, já mostrou a que veio ao dizer que "a aspirina foi feita pelos nazistas e eu uso aspirina" –o ácido acetilsalicílico foi sintetizado pela primeira vez em 1897, mas a referência ficou no ar.
Você pode até desconfiar da inteligência de quem escreve "imprecionante" no Twitter, mas ninguém ali rasga nota de cem.
Apesar do olhar comum de quem cheirou a própria meia antes de ir à TV para decretar não uma nova ideia, mas um novo tempo, chamar a turma de "ala psiquiátrica" não só é reducionista, como ofende e estigmatiza quem realmente precisa de ajuda psiquiátrica para organizar os pensamentos e viver em sociedade.
Não sei se era o caso do ex-secretário, nem do guru do governo, que é sempre pintado como maluco numa webcam instalada nos EUA, mas uma coisa é certa: não há um passo dessa turma que não tenha sido calculado, com método, racionalidade e precisão.
Alimentada pela paranoia e posicionada para a guerra cultural, essa ala ideológica pode ter perdido um soldado, mas segue querendo domesticar o ressentimento de um país com 12 milhões de desempregados e outros tantos em ocupações precárias e sucateadas. Quer também transformar frustração em instrumento de poder, com inimigos declarados e a crença de que esse país só não colheu ainda a glória porque nossa grande vocação nacional foi destruída por artistas, jornalistas, ambientalistas e movimentos sociais que, emporcalhados por um espírito crítico maligno, querem dividir a nação em vez de contribuir para a grandeza do estado patriótico.
Essa conversa furada só usa tarja-preta para censurar inimigos e já deu errado em outros momentos da história que agora querem reinventar. É nosso dever histórico lembrar disso todos os dias.
O trabalho começa dando o nome certo para as coisas.
O que movimenta essa ala não é "loucura" nem "insanidade". É o combo de ressentimento e esperteza de quem nunca foi exemplo de conduta, jamais teve destaque em sua área (não como gostaria) e, uma vez instalada no topo, não sairá de lá enquanto não destruir tudo aquilo que a contrarie e não pense como ela.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.