Os filhos serão nossos colegas de trabalho até 2021. Estamos prontos?
Matheus Pichonelli
27/07/2020 04h00
A nova mesa do trabalho tem jornais espalhados, um molho de pimenta, biscoitos de canela, uma carteira, leite em pó, o estojo das lentes de contato e este computador de onde escrevo. São os resquícios dos muitos ambientes adaptados no mesmo espaço de atividades entre a manhã, a tarde e a noite.
À minha frente, meu parceiro de escritório mastiga ininterruptamente sem tirar os olhos da tela. Está sempre assim, vidrado em alguma novidade.
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Estamos juntos nesta sala há quatro meses ininterruptos e de umas semanas para cá ficamos só os dois até o começo da tarde.
Tomamos café, almoçamos, conversamos sobre nossas últimas ideias e obsessões. Não é exatamente uma relação em pé de igualdade: geralmente eu falo menos e ouço mais. As perguntas dele se avolumam. As interrupções que me desconcentram, também.
Tudo naquele ambiente é demanda. Faz isso? Vamos pra lá? Traz aquilo pra mim?
Quando toca o telefone, espero que ele tome a iniciativa de atender ou então deixo a pessoa do outro lado da linha desistir. No fim quem desiste sou eu, que levanto xingando os céus, tropeço no tapete, como sempre, pego o aparelho e explico que não, não estamos interessados em nenhum serviço de dedetização nem em ampliar a potência da internet móvel neste momento.
Ele sorri aquele sorriso confiante de quem sabe ter de sobra tudo o que hoje me falta: carisma e paciência. É a confiança de quem tem ainda todo o tempo do mundo pela frente.
Por isso, ele é o cara do escritório. Eu virei só o amigo do cara.
Às vezes, perco a paciência e pergunto se ele já não está grandinho para fazer as coisas sozinho. Tipo buscar a própria folha de papel sulfite em vez de perguntar onde está. Está sempre no mesmo lugar, explico, pela enésima vez. Ele bufa da minha rabugice, mas logo puxa papo novamente.
A necessidade de aprovação é nossa dosagem de humor. Depois da irritação, me arrependo das reprimendas, com medo de criar um climão com quem devo dividir essa sala por um bom tempo ainda. Até setembro, numa previsão otimista. Ou até o fim do ano. Nem eu, nem ele, nem ninguém sabe exatamente até quando o mundo lá fora seguirá um universo distante.
De soslaio, por cima da tela do laptop, tento entender o que ele rabisca no papel enquanto olha uma imagem na tevê. Digo que daqui a pouco começa a aula online e ele finge não ouvir.
Por volta das dez da manhã, sugiro uma pausa nas atividades diárias para tomar um refresco. No caso, um café sem açúcar, que ele não bebe, mas me acompanha até a calçada, já perto da garagem. O sol já está forte a essa hora, mesmo no inverno.
É o horário em que, no antigo trabalho, um amigo da baia ao lado vinha até minha mesa e convidava para o que ele chamava de "cigarro existencial". Íamos para o antigo fumódromo da redação para lançar ou matar as ideias que não valiam vingar. Era ali também que a rádio peão operava em baixo volume, entre vidros e fumaças.
Bons tempos.
Faz quatro meses que meu parceiro de trabalho e eu tentamos adaptar nossas personalidades no novo ambiente, compacto, flexível, sem horários rígidos, mas cheio de coisas para fazer e recolher. Fico de calça e tênis esporte para aparentar seriedade. Ele não se importa em passar o dia descalço.
Chefe é chefe.
Ensaio uma DR.
Com o pé apoiado na parede, seguro a xícara ainda fumegante e gesticulo com a outra mão. É um hábito de outros espaços corporativos, quando dava para levantar da poltrona regulada e perguntar a opinião do colega ao lado sobre um insight qualquer. E então vinham os prós, os contras, os poréns e os "aléms".
Não está dando para me concentrar com esse barulho, digo.
E se você usasse fones de ouvido?
Não que não goste do som, explico, em tom agora subserviente, mas é que para escrever o silêncio é tão fundamental quanto o café. Ou o ar. Conto que, para não ter ruído, tenho acordado cada vez mais cedo, antes mesmo de ele se levantar, e adianto tudo o que consigo antes mesmo do primeiro raio de sol aparecer. É justo isso?
Ele me olha, finge que não é com ele, volta para a sala e aumenta o volume. Parece uma provocação. E é.
Meu parceiro de escritório observa com os olhos meus pontos, listados em áudio de WhatsApp, a respeito da pedalada educacional que se desenhou em Brasília durante a semana e foi barrada pela Câmara. Não parece concordar nem discordar. Muito pelo contrário.
Outro assunto que está quicando, digo ao interlocutor, já preparando o terceiro café do dia, é mostrar como o ressentimento tomou conta dos afetos políticos no Brasil. Curioso, ele quer saber o que aquilo significa.
Não tem o que fazer, o danado?
Mostro o release do livro sobre o assunto que acabo de receber e espero dele um veredicto, um contraponto que seja. Quase imploro por uma opinião que seja.
Insolente, ele começa a coçar os ouvidos. Pergunta por que será que os cabelos crescem ininterruptamente e as orelhas, não. E boceja. Torço por esse cochilo desde março, mas o lamaçal provocado pelo copo de água que ele deixou cair no chão da cozinha o desperta. Falo um monte. Ele interrompe e diz que agora quem vai ouvir sou eu.
Em alguma bifurcação das conexões neurais eu perco a linha do que estava pensando sobre a conjuntura: num canto de papel anoto correndo que tudo pode ser explicado pelo processo de disrupção permanente, o crescimento exponencial das soluções tecnológicas, a obsolescência do que até ontem era novidade, e que estamos todos inaugurando o tempo todo novas fases sem ter tempo de nos adaptar às velhas ferramentas, esquecidas antes de serem compreendidas. Tudo agora potencializado pela automação do trabalho, a adaptação dos sistemas de comércio e serviço ao modelo virtual, e uma guerra em torno da tecnologia 5G que ainda vai re-decodificar tudo ao redor.
Outro café.
Ele me olha, como se estivesse anotando o sentido da vida, como se estivesse diante não de um sujeito estranho, mais velho, de uma geração nascida no século passado, mas da própria esfinge. Ele vem com o dedo em riste, como se esboçasse uma reação diante de uma angústia em forma de pergunta:
-Hein?????
-Hein o quê?
-Posso ou não jogar Mario Run no seu celular?
Desisto do texto e abro um sorriso, como quem se defende.
Meu parceiro de trabalho é meu filho e ele só tem sete anos.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.