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Matheus Pichonelli

Coronavírus: Bolsonaro, presidente da necropolítica, não sabe salvar vidas

Matheus Pichonelli

19/03/2020 04h00

Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores em meio à quarentena do coronavírus. Foto: José Cruz/Agência Brasil

Um polegar para cima e o indicador apontado para o eleitor eram as únicas propostas visíveis de Jair Bolsonaro durante a campanha de 2018. Com arminha na mão, ele prometia não dar folga para a vagabundagem, deixando bem claro que cidadão de bem era todo mundo que estava com ele. O resto era alvo.

Não deu outra.

Eleito presidente, o capitão tentou de tudo para implementar o programa "minha arma, minha vida" e o "bolsa excludente de ilicitude" para as forças de segurança que matassem em serviço – os aplausos dos que (ainda) não se enxergam como alvo não explicam as mortes de crianças como Ágatha, Jenifer e Kauã ou do músico Evaldo Rosa dos Santos, fuzilado na frente da família no Rio.

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Enquanto terceirizava as soluções econômicas para o Posto Ipiranga, o ministro que associa desmatamento com a necessidade de comer, Bolsonaro torturava a lógica ao atacar sistemas de controle de velocidade nas estradas e até a cadeirinha de segurança para crianças. Outra obsessão era abrir passagem em território preservado para a exploração de minérios e armar o homem do campo com fuzil.

Precisou uma nuvem de fuligem se deslocar da Amazônia até São Paulo para o eleitor desavisado perceber a curta distância geográfica entre consequências e as palavras da maior autoridade política do país. Não por acaso, futuro e biodiversidade – palavra que engloba o conjunto de espécies vivas – também estavam na mira de um governo marcado por cortes em bolsas de pesquisa, ataques à ciência e desmonte de programas como o de combate à Aids (uma pessoa com HIV, disse certa vez o presidente, "é uma despesa para todos").

Em sua vida pública, foram raras as oportunidades em que Bolsonaro demonstrou algum apreço pela vida humana. Suas obsessões eram outras, como lembrou em um artigo de 2018 o meu amigo e jornalista José Antonio Lima: pena de morte e o controle da natalidade ("pode nos salvar do caos", dizia). 

Em uma entrevista, o presidente que hoje engrossa o coro dos atos contra o Congresso e o STF apostava que as coisas por aqui só iam mudar "no dia em que partir para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando pelo FHC, não deixar ele pra fora não, matando. Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente".

Bolsonaro, que já disse preferir um filho morto em acidente a um filho homossexual, não tem pena de inocentes. Que dirá de opositores? 

Quando Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, foram metralhados, o então pré-candidato disse que não se pronunciaria porque sua opinião sobre a perda de uma vida era "polêmica" demais.

Quando o neto de um opositor morreu, seu filho correu às redes para falar em vitimização. O pai se calou.

Desde então, a lista de inimigos só aumentou – parte deles estava no mesmo barco durante a campanha, e hoje sofre todo tipo de perseguição de suas milícias virtuais.

Em cada gesto e fala, Bolsonaro se mostra um caso patente de patriota que diz amar o seu país e despreza seus compatriotas – ao menos os que não estão dispostos a prestar culto à sua personalidade. 

Aos outros, inclusive funcionários da área ambiental, ele não esconde seu desejo de mandar para a "ponta da praia", um local de execução durante a ditadura, no Rio.

Como um personagem de "Apocalipse Now", que acorda e dá bom dia para o cheiro de napalm, Bolsonaro ainda guarda na cabeceira o livro do coronel Brilhante Ustra, acusado de banalizar os instrumentos de tortura no país. Foi a ele que Bolsonaro dedicou seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, uma das vítimas do coronel. (Outro herói do presidente, o ex-PM Adriano da Nóbrega, estava foragido na Bahia, com contas pagas por milicianos, quando foi morto em uma ação policial.)

Pelo currículo, ninguém pode estranhar que diante de uma pandemia ele não saiba o que fazer para salvar vidas. Seu governo até ensaia respostas, com decretos de calamidade pública e uma tentativa de reconstruir o tecido de apoio em uma sociedade que já vive na informalidade e à beira do abandono. A conferir.

A boa notícia (para o país) é que, enquanto o presidente escorrega, seu ministro da Saúde parece disposto a ignorar as bobagens ditas pelo chefe e trabalhar sem entrar em briga de gangue ideológica. Se depender de sua liderança máxima, porém, ainda é possível ouvir a velha atração da Luciana Gimenez dizendo "vai morrer inocente, e daí".

Quando já tinha ou deveria ter informação suficiente sobre os estragos do novo coronavírus, uma "fantasia", segundo ele, vitaminada pela mídia, a maior preocupação do presidente não era com seus governados, e sim com o enfraquecimento do "seu" governo. Seu desprezo poderia ser visto antes, durante e depois do ato tresloucado de se jogar na galera que se reuniu no domingo em seu apoio. "Se eu me contaminei, isso é responsabilidade minha, ninguém tem nada a ver com isso", disse o presidente, admitindo nas entrelinhas que pouco se importa com quem estava ao seu redor (exatamente o oposto do que pedem todas as orientações de segurança para evitar que o vírus se espalhe).

Para Bolsonaro, a morte nunca foi um problema. Sempre foi solução.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.