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Matheus Pichonelli

"Cara de bolacha": fala gordofóbica de Tralli é impensável hoje. Que bom

Matheus Pichonelli

23/07/2020 04h00

Cena de reportagem com abordagem gordofóbica de César Tralli que o Jornal da Globo levou ao ar. Foto: Reprodução

"A baixinha, loirinha, gordinha, 80 quilos, com cara de bolacha, descobriu na própria feiura a sua fonte de renda. Ela não só já fez propaganda de televisão como resolveu abrir uma agência que só contrata gente feia."

Gravado por César Tralli num shopping de São Paulo, o bullying em forma de texto jornalístico foi ao ar no Jornal da Globo no começo dos anos 1990, década marcada (e registrada nos arquivos) por extravagâncias como a Banheira do Gugu, o Aqui Agora, a boquinha da garrafa e a banda 20 Fingers cantando "Short Dick Man" para baixinhos no Xuxa Hits

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Está certo que os resquícios dos tempos de sinal analógico ainda ecoam em programas policialescos e apelações de auditório, mas é quase impensável ver uma fala como aquela ser replicada em notícia de jornal em 2020.

Se fosse, era cancelamento na hora –para o repórter, para o pauteiro, para o editor e para a frequentadora da praça de alimentação que, ao ser perguntada, respondeu: "Está louco, essa gorda fazer comercial de TV?".

"Isso acontecia na rua o tempo inteiro. Não era diferente do que acontecia no dia a dia", lembrou a atriz e empresária Shahar Boyayan, retratada na reportagem e hoje com 59 anos, ao repórter Bruno Hoffmann, da Gazeta de S.Paulo.

Resgatada, a reportagem pipocou no Twitter e foi compartilhada em mais de um grupo de WhatsApp com amigos (quase todos jornalistas) de que eu participo. Serviu de reflexão para mostrar como os tempos mudaram de lá pra cá.

Mudaram sob protestos, no bom e no mau sentido –daqui é possível ouvir a gritaria dos gordofóbicos resilientes: "Mudaram mesmo, e está tudo muito chato hoje em dia".

Vem então à cabeça uma tirinha da Laerte com um papagaio preso na gaiola ofendendo todo mundo e dizendo adorar ser politicamente incorreto. "É o consolo do prisioneiro", sentencia um pássaro livre que observa os ataques.

Do vídeo, o mais espantoso é saber que ele não foi gravado no tempo dos nossos avôs. 

Muitos dos que trabalham hoje em comunicação, e se policiam para não perpetuar na linguagem preconceitos arraigados, cresceram vendo cenas do tipo na TV aberta. E nas revistas. E nos outdoors. E nas conversas em família.

Na interatividade nada passiva das redes, tiveram de rebolar e ouvir muito até entender que algumas piadas, sacadas aparentemente despretensiosas e representações não tinham a menor graça. 

Pelo contrário: eram ofensivas e causavam sofrimento. Ainda assim, há quem ainda chame este sofrimento de "mimimi" –neologismo dos anos 2010 referente a qualquer dor que só o outro sente.

Quem não ficou pra trás aprendeu, ou deveria ter aprendido, que a linguagem é uma estrutura de poder permeada por imagens de controle, estereótipos e termos pejorativos reivindicados como liberdade e que nada têm de libertador; mal usada, serve para referendar injustiças em um mundo já suficientemente injusto, de acesso restrito a minorias e grupos historicamente marginalizados.

Lembro quando, depois de uma derrota vergonhosa da seleção brasileira masculina, escrevi que o time perdeu porque jogou de salto alto. Fui merecidamente repreendido por uma pergunta enviada na caixa de comentários: por que o elemento feminino é sempre sinônimo de incompetência?

Em uma crítica sobre um filme, ouvi pela primeira vez um contraponto que à princípio me soou como palavrão: "sua visão é heteronormativa".

Com essas e outras, a gente aprende, passando vergonha, não que o mundo está mais sensível ou melindrado, mas que existe um universo para além da nossa forma de olhar e que também pode e deve se expressar.

Amigos de profissão contam envergonhados hoje que já usaram expressões (felizmente) em desuso como "denegrir", "samba do crioulo doido", "judiação" e "homossexualismo" –este último invoca o tempo em que amar pessoas do mesmo sexo era considerado uma doença, daí o "ismo". Dá para fazer um dicionários de termos que com razão foram ou deveriam ser aposentados.

Difícil saber por que nos anos 1990 estávamos mais perto de 1890 do que estamos hoje. Talvez a mudança dos meios modelou a mensagem, como previa um famoso teórico da comunicação. Das caixas de comentários que hoje parecem jurássicas às discussões acaloradas nas redes, ninguém só fala sem ouvir e vice-versa. Todos podem confrontar e ser confrontados, mobilizar e serem mobilizados, e assim expor e levantar questionamentos que não estavam no radar enquanto quem tinha o poder de informar era quem tinha o privilégio de não precisar ouvir.

Falta, claro, muita coisa pela frente. Mesmo sensível a mudanças, a própria TV aberta é ainda refém dos corpos padronizados. Para ficar só num exemplo, basta ver quantas pessoas gordas estão nas ruas ou fazem parte das bancadas. Ou mesmo nos comerciais, que era o intuito da agência fundada por Boyayan.

Isso só vai mudar de vez quando os espaços de poder forem ocupados e estiverem quites com o ambiente diverso do mundo real. O cuidado com a linguagem virá, então, com o aprendizado das próprias experiências, e não do constrangimento de quem teme ser cancelado.

Pensar por este aspecto, o da ausência, é também uma forma de questionar por que não podemos ver beleza nos corpos fora do padrão. Talvez porque a reprodução de beleza seja ainda viciada, mesmo com a ofensa hoje emparedada pelo bom senso.

Como lembrou a Rê Corrêa no Twitter, basta ter autoestima que ninguém tem o direito de te dizer como seu corpo deve ser. 

Isso tornou o mundo mais chato?

Pergunte pra quem até outro dia era ofendida em rede nacional e só tinha a opção de sorrir.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.